A relação
conflituosa e opressiva, marcada pelos castigos físicos, é apenas um dos
modelos de interação entre senhores e escravos no período colonial
brasileiro. Se esse modo era recorrente na produção de açúcar, na
pecuária os negros tinham liberdade para cultivar seus próprios
alimentos, vender o excesso de produção e até constituir família. É o
que mostra pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da USP desenvolvida pelo historiador Antonio Roberto Alves
Vieira e orientada pela professora Vera Lucia Amaral Ferlini.
Não se trata, no
entanto, de um ato de bondade dos senhores. Como a atividade pecuária
lida com terras de grandes extensões, que facilitariam a fuga, a melhor
maneira de manter os escravos por perto era permitir que mantivessem
vínculos com o local. Ao constituir famílias, criava-se o espírito de
solidariedade e cooperação, gerando um senso de responsabilidade para
com os que dele necessitavam. Com cônjuges, filhos e outros parentes, os
escravos teriam mais dificuldade em escapar.
O mesmo ocorre com
as atividades econômicas exercidas pelos escravos em benefício próprio.
Era um jeito de juntar dinheiro para algum dia, quem sabe, comprar a
própria alforria e a dos próximos. Mas o sonho da liberdade poderia vir
abaixo com a divisão das terras do senhor, por morte, casamento dos
filhos ou venda a outro dono.
Pesquisas apontam
que escravos de senhores diferentes relacionavam-se entre si “por meio
de laços familiares, sanguíneos ou espirituais como o compadrio, por
exemplo”, aponta Vieira. O certo grau de liberdade abria espaço para que
cativos de uma mesma fazenda ou senhor se organizassem entre si, com
relações de poder comuns a qualquer sociedade. “De maneira que, em um
ambiente onde a distribuição de benesses e privilégios eram bens
escassos, a competição e o conflito estavam na ordem do dia sempre”.
Na pecuária,
atividade que teve grande importância na colonização do interior do
Brasil, os negros atuavam também como vaqueiros e guarda-costas dos
senhores, servindo às lutas entre famílias de colonos. Segundo o
historiador Caetano de Carli, não era preciso comprar novos
trabalhadores do tráfico para manter a população de escravos – as novas
gerações já davam conta de suprir a demanda. É o que mostra o alto
número de crioulos, que são os nascidos no Brasil, e crianças, bem como a
presença de homens e mulheres em quantidade igual.
A agricultura
cafeeira e a algodoeira favoreciam uma relação mais próxima entre
escravos e senhores, sobretudo em plantações menores do Sul e Sudeste. O
botânico francês Saint-Hilaire, ao viajar por essas regiões, observou
que em muitos casos os negros trabalhavam lado-a-lado com os donos, além
de beber, rezar e até dançar junto com eles. Sofriam menos castigos
corporais que aqueles das plantations e, em partes do estado de São
Paulo, até conseguiam juntar dinheiro para comprar fumo, bebidas e peças
de vestuário. No Sul, havia casos em que ficavam responsáveis pela
criação de animais sem supervisão.
Casos assim não eram
necessariamente a exceção. No ano de 1819, que coincide com a viagem de
Saint-Hilaire, 44% dos escravos encontravam-se no Sul e Sudeste. Para
Vieira, a pesquisa história em pecuária no Brasil ainda tem muito a
crescer. “Avanços significativos são observados na historiografia
rio-grandense, embora, reconheçam estrarem ainda bem aquém da produção
de seus vizinhos platinos. Porém isso pode impulsionar novas abordagens,
subsidiando nossas pesquisas, tanto em termos paradigmáticos quanto
metodológicos”, diz.
Fonte: Unesp - Redação: Kelvin
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