Por Ricardo Figueiredo de Castro*
Durante
os anos 1930 e, especialmente, durante a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), o partido e o Estado nazistas empreenderam um processo de
marginalização, perseguição e assassinato em massa de milhões de judeus
alemães e europeus.
Esse processo contou com importantes recursos ideológicos e materiais para a sua realização. Em
termos ideológicos, os nazistas utilizaram-se de um nacionalismo que
unia numa síntese mística o racismo e a eugenia, e definia que apenas os
indivíduos de origem “ariana” poderiam integrar a comunidade alemã.
Assim, todos aqueles que não cumpriam esses requisitos raciais foram excluídos e perderam a cidadania alemã. Por
outro lado, utilizaram-se de todos os recursos materiais do Estado
alemão para realizar o objetivo de resolver definitivamente o “problema
judaico”, ou seja, eliminar os judeus da Europa, tais como centenas de
campos de concentração e de extermínio, milhares de membros da
burocracia e agentes policiais e militares do Estado alemão e da
famigerada SS (Schutzstaffel), ferrovias, trens, combustível, bem como grandes recursos financeiros.
Assim,
os nazistas colocaram em funcionamento uma gigantesca máquina de
explorar, triturar e descartar seres humanos, seja através da morte
lenta por fome, doenças e exaustão física, seja através da execução
sumária por fuzilamento ou asfixia nas câmaras de gás nos campos de
concentração/extermínio.
O
auge deste processo aconteceu no período entre 1942 e no final da
guerra (1945), durante o qual o genocídio foi realizado em escala
industrial e com eficiência logística impressionante. Não devemos nos
esquecer também que milhares de judeus, prisioneiros de guerra etc.
foram usados como escravos em fábricas e obras públicas na Alemanha,
produzindo vultosos lucros aos dirigentes da SS e às grandes empresas
alemães, muitas das quais existem até hoje.
Os
historiadores, sociólogos e outros especialistas acadêmicos vem
pesquisando exaustivamente esse processo e têm divergências em vários
pontos, tais como o número exato de vítimas (na casa de milhões de
pessoas) e quanto à natureza da decisão do início do processo, isto é,
se ele foi intencional (“intencionalistas”) ou se estava inserido na
própria dinâmica do regime (“funcionalistas”). No entanto, nenhum
pesquisador discute se o Holocausto existiu ou não.
Apesar
disso, desde poucos anos após a realização deste crime contra a
humanidade, pessoas de diferentes nacionalidades vem se dedicando a
resgatar a imagem de Hitler e da Alemanha nazista afirmando que o
Holocausto não aconteceu e que este, na verdade, seria o produto de uma
calúnia criada e disseminada pelos judeus que a usariam como estratégia
para realizar seu objetivo de dominar o mundo.
O
Negacionismo do Holocausto surgiu, portanto, logo após a Segunda Guerra
Mundial, com os livros dos franceses Maurice Bardèche e de Paul
Rassinier e do estadunidense Harry Elmer Barnes; e, a partir de 1978,
ampliou sua audiência e passou a integrar o debate político tanto nos
Estados Unidos quanto na França. Nos Estados Unidos foi então criado o Institute for Historical Review
(IHR), uma instituição que, usando um nome que sugere ser uma
respeitável instituição acadêmica de historiadores, se dedica
sistematicamente a disseminar o ódio aos judeus (antissemitismo) e a
teoria do complô judaico, através da negação do Holocausto. Ainda em
1978, na França, o professor de literatura Robert Faurisson passou a
ocupar um cargo acadêmico na Universidade de Lyon 2 e então introduziu o tema do negacionismo no espaço universitário e na mídia francesa.
Assim,
partir do final dos anos 1970, esse movimento político/ideológico
ampliou-se para além de um pequeno círculo de leitores e simpatizantes
do fascismo histórico. Nesse processo, confluíram vários fatores, tais
como: a) uma crise econômica e social do capitalismo mundial; b) uma
crise política e representativa dos partidos políticos tradicionais,
tanto à direita quanto à esquerda; c) uma crise política das esquerdas
tradicionais, ampliada pelo fim da URSS e do “socialismo real”; d) uma
crise dos paradigmas da modernidade e da própria historiografia; e),
sobretudo para o que nos interessa aqui, o surgimento de uma nova
extrema-direita e o fortalecimento de um elemento ideológico tradicional
no Ocidente, a teoria da conspiração (ou complô), como chave
explicativa para se entender a sociedade, especialmente após os
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, ocorridos nos Estados
Unidos. Além da confluência destes fatores surgiu então uma nova
ferramenta de disseminação, coordenação e financiamento da
extrema-direita e dos Negacionistas: a Internet.
O
Negacionismo do Holocausto não é uma corrente historiográfica legítima
que se dedique a pesquisar criticamente o Holocausto, mas sim um
instrumento da ação ideológica de grupos políticos radicais, em sua
grande maioria de extrema-direita. Concordamos, assim, com a já extensa
historiografia que usa o termo “Negacionistas do Holocausto” para
qualificar os autodenominados “Revisionistas do Holocausto”. Os
ideólogos do Negacionismo do Holocausto negam ou minimizam os efeitos do
Holocausto, e afirmam que o assassinato sistemático de milhões de
judeus, ciganos, eslavos etc. é uma mentira criada e mantida pelos
vencedores da Segunda Guerra Mundial em estreita aliança com os judeus
sionistas fundadores do Estado de Israel. O Negacionismo do Holocausto
é, portanto, o outro lado da moeda do “complô judaico internacional”
difundido desde o início do século XX pelo livro “O Protocolo dos Sábios
de Sião”.
O
complô judaico é, segundo Girardet (1987, p. 25-34), uma das três
grandes narrativas do complô elaboradas entre o final do século XVIII e
início do século XX, quando foi editado pela primeira vez o famigerado
“Protocolo dos Sábios de Sião”. Esse livro, forjado pela polícia
política do regime czarista, foi rapidamente incorporado como arma de
propaganda antissoviética e antibolchevique nos anos 1920 e 1930. Os
nacional-socialistas alemães transformam-no numa “prova irrefutável” de
que os judeus são uma ameaça mundial ao mundo ocidental e a obra ainda
hoje é reeditada em várias línguas e utilizada como uma espúria prova da
existência de um suposto complô judaico internacional. Esse livro
tornou-se, desde então, peça de propaganda do antissemitismo e, após a
Segunda Guerra Mundial, também do antissionismo.
No Brasil, foi traduzido pelo ideólogo integralista Gustavo Barroso e editado nos anos 1930. No final do século XX, a Editora Revisão
se dedicou a publicar no Brasil livros negacionistas e a fazer
propaganda sistemática do assunto. Seu editor foi processado
judicialmente e atualmente a editora não tem mais atividades legais em
território brasileiro.
Alguns
pesquisadores consideram que, a partir do final do século XX, as
teorias conspiratórias (ou complôs) ganharam uma dimensão explicativa
cada vez mais ampla, ou seja, os complôs passaram a explicar fenômenos
de escala mundial, os chamados mega-complôs (TAGUIEFF, 2006) ou
super-conspirações (BARKUN, 2003: 6). A crescente importância da cultura
conspiracionista aumentou também a demanda por abordagens
mistificadoras da história (pseudo-história) (2) que frequentemente estão a serviço de ideologias de extrema-direita (1).
Desse
modo, a nova extrema-direita, a partir do final do século XX, atualiza
essa perspectiva conspiracionista de sua visão de mundo ao articular sua
filosofia da história maniqueísta com um típico exemplo de
pseudo-história: o Negacionismo do Holocausto. O Negacionismo do
Holocausto tornou-se um elemento fundamental para a manutenção das
forças de atração que mantém unidos os diferentes grupos e famílias
ideológicas da extrema-direita contemporânea e ajuda a definir sua
identidade. (3)
Por
mais que se publiquem artigos e livros que denunciam o caráter falso
desse livro os crentes da conspiração judaica internacional se recusam a
aceitar os argumentos listados pelos historiadores para denunciar a
obra. Da mesma, e seguindo a lógica das teorias da conspiração, os
defensores e seguidores do Negacionismo do Holocausto rejeitam qualquer
análise proposta pelos historiadores profissionais, acusando-os, entre
outras coisas, de estarem a serviço dos judeus. Certamente, isso se deve
à lógica das teorias conspiratórias que têm quatro princípios básicos:
“nada acontece por acidente”, “nada é o que parece”, “tudo está
conectado” e “tudo o que acontece é o resultado de vontades ocultas e
malignas” (BARKUN, 4 e TAGUIEFF, 57).
A
forma como as teorias da conspiração entendem o mundo rejeita as
análises críticas dos cientistas sociais (sociólogos, historiadores,
cientistas políticos etc.), preferindo compreendê-lo como o palco da
luta eterna entre as forças do bem contra as forças do mal. Os
Negacionistas do Holocausto consideram-se, pois, soldados das forças do
bem, denunciando o complô judaico para dominar o mundo que estaria sendo
ocultado pela “grande mentira” (Holocausto) que, ao culpar os alemães
do crime de genocídio etc., facilitaria a realização de seu próprio
projeto (oculto) de dominação mundial.
A
cultura conspiracionista está presente de forma arraigada na cultura de
massas, através de diversos mitos urbanos, livros e filmes, tais como: o
livro (2003) e o filme (2006) “O código da Vinci”, a série televisiva
(1993 a 2002) e o filme (1998) “Arquivo X”, filmes como “Teoria da
Conspiração” (Conspiracy Theory, 1997) e as teorias conspiratórias
elaboradas para explicar o atentado ao World Trade Center etc. Essa
disseminação certamente colabora para a utilização do conspiracionismo
pela extrema-direita como uma estratégia de disseminação de sua mensagem
política entre diferentes setores e classes sociais.
Concluindo,
consideramos o Negacionismo do Holocausto é um tema que faz parte do
horizonte político contemporâneo e certamente deve ser objeto da
historiografia do Tempo Presente. Os historiadores comprometidos com uma
historiografia atuante na defesa da democracia e dos direitos humanos
não podem deixar de incorporar os temas da pseudo-história e das teorias
conspiratórias às suas pesquisas e cursos.
(1) “(...) o conceito de
ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido
(significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e
sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas –- que
eu chamarei de ´relações de dominação´. Ideologia, falando de uma
maneira mais ampla, é sentido a serviço do poder.” THOMPSON, P. 16
(2) Para uma discussão sobre a pseudo-história ver ALCHIN.
(3) Cf. Burris, Smith & Strahm (p. 221-222) para o caso estadunidense e CAMUS (p. 33) para o caso francês.
Bibliografia
ALLCHIN, Douglas. Pseudohistory as pseudoscience. Science & Education. 13: 179-195, 2004.BARKUN, Michael. The culture of conspiracy: apocalyptic visions in contemporary America. Berkeley: University of California Press, 2003.
BURRIS, Val, SMITH, Emery, STRAHM, Ann. “White supremacists networks on the Internet”. Sociological Focus, vol. 33, no 2, May 2000.
CAMUS, Jean-Yves. L´extrême droite aujourd´hui. Toulouse: Éditions Milan, 1996
GIRARDET, Raol. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
TAGUIEFF, Pierre-André. L´imaginaire du complot mondial: aspects d´un mythe moderne. Mille et une nuits, 2006.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
Leituras Complementares
*
Professor Adjunto de História Contemporânea no Instituto de História
(IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É filiado ao GT
"Direitas, história e memória" e sou pesquisador do Laboratório de
Estudos do Tempo Presente (TEMPO) do IH/UFRJ. Tem experiência na área de
História Social e Política, com ênfase em Brasil República, atuando
principalmente nos seguintes temas: História política brasileira do
século XX, com ênfase nas esquerdas brasileiras (comunistas,
socialistas, trotskistas, principalmente). Trabalha também com a
história política e cultural das direitas, com ênfase no Negacionismo do
Holocausto e no Conspiracionismo (Conspiracy Theory).
Fonte: http://cafehistoria.ning.com/negacionismodoholocausto